Notícias
15/03/2007
Com mais de 50 anos de profissão, o oftalmologista Humberto de Castro Lima conta sua trajetória na especialidade e traça um panorama da oftalmologia brasileira atual.
Marina de Almeida
Em 1948, o jovem baiano Humberto de Castro Lima saía formado da Faculdade de Medicina da Bahia, primeira escola de medicina do Brasil criada por Dom João VI. Naquela época, ainda não sabia que se tornaria um dos grandes nomes da oftalmologia brasileira, graças a seu pioneirismo e entusiasmo pela especialidade.
Foi esse mesmo pioneirismo que o impulsionou a se aventurar nos EUA, em dias em que o intercâmbio científico entre países – principalmente entre nações ricas e pobres – não se dava com a facilidade que acontece hoje. Lima fez suas malas logo depois de terminar a graduação para aprofundar seus conhecimentos em Nova York, nos EUA. Lá estudou com afinco, conheceu grandes profissionais e testemunhou descobertas e procedimentos que se tornariam marcos da especialidade no cenário mundial.
Quando voltou para o Brasil, já estava, sem saber, na vanguarda da oftalmologia brasileira. Especializou-se em glaucoma, sem nunca deixar de lado as outras subespecialidades. Passou a ser parte do time de profissionais de primeiríssimo escalão. Não demorou muito para que seu nome se tornasse referência no Norte e Nordeste do país e sua opinião passasse a ser respeitada e consultada por oftalmologistas de todo o Brasil.
Hoje, aos 82 anos de idade e mais de 50 anos de carreira, Lima continua na ativa. Ele ainda fala da oftalmologia com a mesma paixão do início de sua trajetória e analisa a situação atual da especialidade no país com a mesma lucidez e espírito crítico que permeou todas as decisões de sua carreira. Veja a seguir alguns dos principais trechos da entrevista que ele concedeu à Universo Visual.
Universo Visual – Qual foi seu primeiro contato com a oftalmologia?
Humberto de Castro Lima – O início da minha especialização em oftalmologia aconteceu quando eu estava no terceiro ano da faculdade de medicina, através do convite do professor Orlando de Castro Lima, meu irmão e primeiro mestre em oftalmologia e otorrinolaringologia. Ele me chamou para trabalhar em clínicas para pacientes carentes e no seu consultório particular, prática bastante comum para a época. Mais adiante, entre os quinto e sexto anos da faculdade, fui aceito para um curso de especialização em oftalmologia, com duração de três meses, ministrado pelo eminente professor Moacyr Álvaro, que foi quem me aproximou muito da oftalmologia paulista.
UV – E depois de formado em oftalmologia, o que o senhor fez?
Lima – Logo após a graduação eu já tinha um bom número de pacientes e cliniquei por seis meses em Salvador, quando surgiu a oportunidade de uma bolsa de estudos da Associação Baiana de Medicina para ser médico interno no Passaic General Hospital, em Nova Jersey, EUA. Em agosto de 1949, embarquei para os EUA e fiz um internato rotatório em medicina geral, com duração de 11 meses. Apesar de não ter características universitárias, o hospital tinha um padrão bastante razoável, com sessões anátomo-clínicas e outras atividades estimulantes, que me deram base para a clínica geral e a cirurgia, mas não oferecia nada de significativo em oftalmologia. Por isso, durante este período, freqüentei numerosos cursos na especialidade. Foram cursos de curta duração, em especial no New York Eye and Ear Infirmary, em Nova York , onde tive a sorte de encontrar Conrad Berens, o grande mestre americano que modificou definitivamente a minha vida profissional.
Conrad Berens tinha uma visão pan-americana e procurava ajudar todos os que viessem de países sul-americanos. Era um homem de invulgar personalidade e ensinou-me, pelo exemplo, condutas e processos inteligentes e éticos. Antes de ingressar no New York Eye and Ear Infirmary, filiado, na época, à New York University, eu já tinha muita admiração por outros grandes mestres da oftalmologia americana como Wendell Hughes, H. Romaine e Milton Berliner. Mas foi o dr. Berens, por seu prestígio e influência, que conseguiu para mim um estágio de “residente especial” por quase dois meses.
Esse período abriu caminhos para uma completa residência médica em oftalmologia e, durante aqueles dois meses, acho que fui o residente que mais trabalhou, pois estava exultante e disposto a aproveitar todas as oportunidades. Cumpria minhas tarefas e também dava cobertura aos plantões da maioria dos outros residentes. Entretanto, eu voltaria ao Brasil com uma visão extremamente superficial da avançada oftalmologia americana, pois nesse período não foi possível um aprofundamento maior.
Mas um acaso mudou o meu destino, quando, já sem esperanças de poder continuar, meu colega de quarto e querido companheiro Henry Sloane foi chamado para a guerra da Coréia. Com seu apoio e o voto favorável do Conselho de Cirurgiões, ocupei o lugar e concluí minha jornada nos EUA como um verdadeiro residente, por mais dois anos.
UV – Como foi esse período?
Lima – Uma experiência maravilhosa. Foi uma época em que tive a oportunidade de participar do curso “Lancaster Lectures in Ophthalmology”, realizado pelo Boston Council of Ophthalmology, onde conheci, entre outros, Peter Kronfeld, grande glaucomatólogo, e o insuperável e inesquecível mestre da retinologia Charles Schensee. Durante esse curto intervalo de tempo, ficamos na cidade de Maine, tendo aulas pela manhã, à tarde e à noite. Este curso básico intensivo correspondia ao que era dado regularmente nas universidades americanas ou hospitais credenciados.
Nessa época convivi com grandes mestres da oftalmologia americana e mundial, como Brittain Payne, Bernard Samuels e os refugiados europeus das perseguições nazistas, como o ex-professor titular de Viena, Adalbert Fucs e o ex-professor Klefeld, titular de Bruxelas. Os encontros, os seminários, as sessões clínicas, as reuniões da Sociedade de Oftalmologia de Nova York eram como verdadeiros congressos mensais, colocados à minha disposição, na febril atividade científica e cultural daquela que Charles Schepens chamou de “foyer da cultura internacional”.
Os dois anos de residência no New York Eye and Ear Infirmary me deram o título de junior e senior resident e de house surgeon. Ao final de residência permaneci por mais seis meses no hospital e fui indicado para exercer a função de assistente clínico. Nessa mesma época resolvi tirar o American Board of Ophthalmology, uma espécie de título de especialista. Depois de quatro anos fora da Bahia, retornei com o reconhecimento da aptidão de um especialista americano.
UV - E como foi a volta ao Brasil?
Lima – Quando cheguei da residência, minha formação era muito ampla e genérica, mas ainda assim eu tinha um grande entusiasmo e sucesso em estrabologia, especialidade que ainda engatinhava na Bahia. Fiz um número enorme de cirurgias funcionais e estéticas, inovando nas indicações e nos métodos e mudando o panorama regional. Também realizei inúmeras cirurgias de catarata e de glaucoma. Glaucomatologia foi, aliás, a especialidade a que dediquei a maior parte da minha vida, pois eu havia sido contaminado pelo entusiasmo do grande glaucomatólogo Peter Kron, de Chicago, EUA.
UV – Além do professor Moacyr Álvaro, quem mais o influenciou em sua carreira?
Lima – Quando eu era estudante tive um relacionamento muito construtivo com o oftalmologista Ciro de Rezende, que se estendeu após a minha formação. Em São Paulo também convivi com Jorge Alberto Caldeira, Renato Toledo, Rubens Belfort Matos e mais recentemente, com Remo Susanna, Newton Kara José, Paulo Augusto de Arruda Melo e Rubens Belfort Júnior. No Rio Grande do Sul, também tive grandes parceiros como Ítalo Marcon e Ivo Corrêa Meyer. No Paraná, os queridos Carlos e Saly Moreira. Cito essas pessoas porque elas se constituíram em grande aprendizado para minha especialização.
UV – Como o senhor vê a atual necessidade de especialização dos oftalmologistas?
Lima – A tendência na oftalmologia é de cada vez mais especialistas focados em um setor ou segmento. É a repetição do que acontece na medicina em geral. Por ser uma especialidade extremamente técnica, racional e com uma instrumentação tão rica, a oftalmologia é propícia a esta especialização. No entanto, acho que a super-especialização é um exagero quando começa muito cedo, mas é um aperfeiçoamento, num determinado momento da vida. Não a vejo como inconveniente.
Nunca fui um especialista extremado. Fui um glaucomatólogo bem informado, preocupado em atuar em todos os segmentos da oftalmologia, inclusive após minha chegada à Bahia, época em que fiz, durante oito anos, cirurgia de retina. Em 1962, como presidente da mesa redonda, na abertura do Congresso de Belo Horizonte, sob a égide de Hilton Rocha, apresentei um trabalho caprichado, cujo tema era “Glaucoma: Problema Médico-Social”.
UV – Que diferenças o senhor vê entre as residências daquela época e as atuais?
Lima – Na realidade, eu diria que com a minha residência eu me antecipei na história da oftalmologia baiana. Fiz uma residência completa, com características muito semelhantes à atual residência médica brasileira. O Brasil hoje está avançadíssimo, e as residências brasileiras são tão boas quanto qualquer uma fora do país.
A residência do New York Eye and Ear Infirmary se constituía num aprendizado prático, com um volume enorme de diagnósticos e tratamentos, dando uma visão ampla dos problemas oftalmológicos. Além disso, em Nova York, meu aprendizado era complementado pelo grande número de palestras, conferências e simpósios disponíveis, como ocorre hoje em São Paulo e nas grandes capitais. Aliás, não vejo muita diferença no meu caso. Vejo, sim, uma enorme diferença entre o Brasil de 1950 e o Brasil de hoje, que evolui fantasticamente. Aqueles que se formaram no Brasil na década de 50 não tinham residências médicas disponíveis, que só se desenvolveram a partir da década de 70. O sistema de formação brasileiro evoluiu de forma extraordinária, tendo o Conselho Brasileiro de Oftalmologia à frente.
UV – O senhor acha que ser oftalmologista hoje é mais difícil?
Lima – Não posso opinar no sentido coletivo. Minha situação sempre foi cercada por circunstâncias muito particulares: quando iniciei de fato minha carreira, depois de quatro anos na residência, minha clínica ficava em uma província, já que a cidade de Salvador não tinha nem 500 mil habitantes.
Como já contei, antes de viajar treinei com meu irmão e, na época, a oftalmologia e otorrinolaringologia eram praticadas em conjunto. Mas quando voltei da residência, decidiu se dedicar exclusivamente à otorrinolaringologia. Conseqüentemente, meu consultório se encheu de pacientes e o meu nome quase se transformou em sinônimo de oftalmologia. Passei a ser um referencial em oftalmologia no Norte e Nordeste.
Uma intercorrência muito feliz na minha carreira foi o desenvolvimento da glaucomatologia no país, liderada por Roberto Sampaolesi, Celso de Carvalho e Nassim Calixto. As grandes personalidades da oftalmologia da época me guiavam e mantinham comigo um contato permanente. Portanto, minha carreira não pode ser tomada como exemplo, pois fui um privilegiado. Apesar de ter muitos colegas de valor na cidade, fui senhor do terreno e, naquele momento, não posso dizer que tive dificuldades.
Além da grande preocupação com as complicações de todas as cirurgias oculares e de estabelecer o melhor para a felicidade dos pacientes, tenho a satisfação de ter tratado de ricos e pobres com igual deferência, com o melhor que pude dar.
UV – Como os avanços tecnológicos e as novas drogas beneficiaram a oftalmologia?
Lima – A evolução da oftalmologia foi fantástica e os pacientes são os maiores beneficiários. Quando voltei da residência, um paciente operado de retina ficava de 15 a 30 dias deitado, às vezes com dois travesseiros de areia, um de cada lado. Eram dois tijolos de areia para não mexer a cabeça e correr riscos de, por exemplo, descolamento – técnicas que depois provaram ser absolutamente ineficazes.
A evolução cirúrgica foi enorme. Fiz muita “cirurgia de Arruga” no início da minha carreira. Era preciso cauterizar grandes extensões do segmento posterior. Agora, a cirurgia de retina é tranqüila, linda, elegante, e pode-se dizer, até artística. Numa cirurgia de catarata, pequenos orifícios permitem colocar um leito adequado para uma lente artificial, dando mais conforto ao paciente e evitando a imobilidade e o sofrimento devido às complicações. Hoje, as cirurgias são altamente seguras e eficazes.
Quando cheguei dos EUA ainda usávamos injeções de micróbios de tifo atenuados para provocar febre e produzir cortisol. Hoje, com a evolução das drogas, temos os corticóides. Outro exemplo: a tensão ocular era antes tratada exclusivamente com pilocarpina e eserina. Atualmente os beta-bloqueadores dão aos pacientes uma melhor qualidade de vida.
A área da eletrônica e da óptica também evoluiu muito. No tempo em que comecei, só existiam as lentes bifocais. Logo apareceram as trifocais e só muito depois as multifocais, tipo Varilux, que foram se aperfeiçoando. Os implantes não existiam. Eu participei do primeiro implante de uma lente intra-ocular nos EUA, realizado por Joaquim Barraquer, com quem mantive uma relação muito proveitosa por todos estes anos. Passo a passo, chegamos às lentes intra-oculares de hoje, às lentes de contato, às cirurgias refrativas.
Essas mudanças devem ser vista por dois aspectos. Primeiro o do avanço da tecnologia, que alcançou níveis excepcionais em todos os campos da vida. A revolução da Internet, por exemplo, com suas imensas possibilidades de difusão e troca de conhecimento, nos levou, entre outras coisas, a poder fazer congressos e cursos à distância, utilizando vídeo-conferências. Este é um novo mundo, do qual eu tenho até um pouco de medo de participar, por não estar acostumado. Mas, há um segundo aspecto, tão ou mais importante que o outro: o da engenhosidade dos grandes oftalmologistas através dos tempos. Sou da época do tonômetro de Schiotz, que não era confiável por conta da rigidez escleral. Depois, na segunda metade do século passado, surgiu a maravilha que é o tonômetro de Goldmann, inspirado numa experiência feita muito tempo antes, pelo russo Maklakov.
Esse desenvolvimento contínuo das técnicas, inclusive por oftalmologistas brasileiros, nos faz pensar que, ao lado do desenvolvimento tecnológico, houve um aperfeiçoamento permanente da criatura humana uma busca de virtuosismo e de super-especialização que levou os médicos a se tornarem grandes restauradores da economia do globo ocular, a ponto de poder restituir a um indivíduo sua visão.
UV - Como o senhor vê a oftalmologia brasileira hoje no cenário mundial?
Lima – A oftalmologia brasileira, sem dúvida, cresceu muito sob todos os pontos de vista nestes quase 60 anos. Na quantidade de especialistas, na capacidade cirúrgica, na produção de conhecimento, na organização e no reconhecimento profissional, dentro e fora do país. A formação oferecida aos jovens, por meio das residências, graças inclusive às exigências do CBO, promove uma qualificação de bases sólidas, aliando conhecimento teórico a grande experiência prática, muito diferente do meu tempo. Os residentes do Instituto Brasileiro de Oftalmologia e Prevenção da Cegueira, fundado por mim em 10 de outubro de 1959, por exemplo, chegam a realizar em condições técnicas ideais entre 300 a 400 cirurgias de catarata durante o período de residência. Tenho minhas dúvidas se, em algum outro lugar do mundo, um jovem oftalmologista em formação tenha acesso a esse volume de treinamento cirúrgico.
UV – Que dicas o senhor daria para quem está começando nessa carreira?
Lima – O que é que se pode dizer para os jovens? Será que ainda faz sentido o que disse o baiano Ruy Barbosa, no século retrasado? Foi mais ou menos assim: para aprender a mandar é preciso saber obedecer, para entender é importante saber ouvir, não se deve delirar com o próprio triunfo. Para não desistir é bom pensar que se pode vir a saber tudo, mas para não se tornar um presunçoso é bom imaginar que, por mais que se tiver aprendido, muito pouco terá se chegado a saber.
Lembrando sempre que a vida é um permanente aprendizado, eu acredito que ser disciplinado, estudioso, curioso e aproximar-se dos competentes, deles auferindo aquilo que vem da experiência, são algumas regras básicas para ser um bom médico. Mas para ser um grande oftalmologista, é preciso mais. É preciso ser, também, um médico humano, preocupado em ouvir, em acolher e cuidar das pessoas. Tenho notado, na maioria dos oftalmologistas jovens, uma vontade enorme de aprender.